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quarta-feira, 8 de maio de 2024

O outro lado da vida

 O relógio não tem mais ponteiros, as horas vagam aleatórias no caos que atira a menina à sorte. O pensamento é o único indicador do tempo. Há um trem no trilho imaginário que marca outro tempo, veloz e feroz a devorar as entranhas do compasso da vida. A menina roda a roda da vida, enquanto as Moiras tecem o fio que será cortado. Às vezes, o destino é premeditado. A menina procura amigos ao seu redor, mas apenas observa o deserto num tom desbotado, a menina perscruta algum diálogo com o eco de sua própria voz em solo abandonado, a menina corre para todos os lados, labirintos humanos, paredes imóveis, corpos intocáveis. Ela perdoa Deus com todas as suas forças, mas o despreza na mesma intensidade em que é desprezada por todos os seres sapientes na Terra. Põe-se diante da mesa a escrever seu mau agouro, não sabe quando tudo começou, quando as coisas deixaram de dar certo. Talvez naquele encontro infeliz, em que resolvera visitar uma amiga antiga. Decidiram beber vinho, um Domaine de la Romanée-Conti falsificado, e começaram a divagar sobre as coisas falsas na vida.

- Dizem que as fakes news são verdades reelaboradas por isso são notícias convincentes.

- Não, idiota, as notícias falsas são fakes news, é só traduzir.

- Mas toda tradução é tautológica e dá margem para várias interpretações. O falso é prejudicial e para ser convincente precisa de certa sofisticação, veja o caso desse vinho, o verdadeiro custa o olho da cara, o falso é menos caro, mas ainda é sofisticado, apenas mais acessível, e alcança um público maior. O falso tem esse poder sobre a realidade e as pessoas.

- Esse vinho é realmente falso? Porque está maravilhoso!

- Está vendo? O falso traduz outras verdades em nossas vidas, basta reconhecer sua condição de não verdadeiro. Convivemos com isso há anos. O que são fatos senão interpretações?

- Vamos deixar essa conversa de lado ou vamos nos tornar fascistas (risos).

A menina tinha ideias brilhantes, mas pouco brio. Entrava e saía de qualquer ambiente com a máscara que lhe cabia melhor. Em um momento era aprendiz, em outro, conhecedora absoluta de todos os assuntos, quase douta. Entrou em crise existencial após mergulhar em si mesma e se saber nada, o absoluto nada, onde pensara ser todo mundo era ninguém. Não havia quem pensasse mais em sua existência. Aquela juventude se transformou num tempo solitário. Cadê os ponteiros da alegria? Envelhecera. Sentada na cadeira da varanda diante da noite melancólica tentava esquecer todos os amigos das horas idas, esvaídos nas nuvens carregadas pelo vento a tentar alcançar o céu distante. O entusiasmo da vida desfazendo-se juntamente com as células adormecidas. Um cheiro estranho, forte, intenso subiu pelo jardim da janela lateral e pousou sobre sua perna fraca, pensara ser a morte lhe perscrutando. Era um percevejo. Matou a morte fétida sem perdão. Aquela menina ainda queria viver, mas sentia um sono profundo diante de tanta ausência e efemeridade no século que ainda conseguira adentrar. Se a morte era fake ela jamais saberia.   

 

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