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terça-feira, 26 de novembro de 2024

O Reinado de Quem Conta um Conto...

Ela era uma mulher amalgamada com um jovem abastado. Talvez a relação seja de interesse, enquanto ela evitava a solidão, ele desfrutava do luxo. E assim formaram uma família. Um casamento de aparência?! Não. Um casamento de trocas. A noiva sempre fora uma pessoa humana, amorosa e dócil, querida por todos os familiares, sem exceção. Mas algo mudou nela com esse vínculo, ou será que ela sempre fora uma pessoa dada ao materialismo individualista e cruel e ninguém havia percebido?

Sim, porque a sociedade contemporânea é capitalista neoliberalista e a função do sujeito é manter o sistema girando a roda da fortuna das elites e dos trabalhadores, menos a dos pobres. E há uns pobres coitados que nem merecem consideração. É o que o capitalismo faz com as pessoas, objetifica-as ou as desqualifica. Você é o que você consome, não na perspectiva sustentável, do ponto de vista quantitativo e mercadológico. Bolsa de grife, roupa de marca, sapatos caros, figurinos prontos e estilizados para a grande atuação no palco social.

As máscaras também lhe são muito caras, pois é custosos ter de interpretar um ou outro personagem em cada setor da sociedade, sempre mantendo a pose elitista, esnobe e simulando, simultaneamente, a simplicidade que deve ser natural para um milionário. A burguesia fede.

***

Ela, que era uma rosa perfumada, perdeu a sua essência para o príncipe que a salvou da torre. Mas não a livrou da morte, simbólica. Seus sonhos tornaram-se desejos de joias e diamantes, mansões e palácios.

Queria a grandeza do mundo material, as coisas mais supérfluas, os bens superficiais, e assim se tornaram rei e rainha de um reinado pobre de princípios e valores, não havia mais o que vender ou o que comprar, então a moeda passou a ser a informação sobre a vida alheia, as estórias mais assustadoras tinham um valor maior, as que causassem mais estragos nas relações afetivas também. O rei e a rainha, com tanta riqueza, puseram olheiros nas ruas para escutar as conversas, e foram acumulando ainda mais riquezas. Até o dia em que um lindo jovem foi revelado como amante do rei. Não se sabia o valor da notícia, mas se sabia o preço da difamação.

O reinado entrou em decadência, pois o rei e a rainha começaram a brigar e vender notícias um sobre o outro. Perderam tudo, dinheiro, luxo, dignidade. Mas ainda tinham uma carta na manga. O livro das estórias, que foi vendido para uma contadora com a condição de reescrever o livro e substituir as riquezas materiais do reino por riquezas imateriais, pregando o amor e a gentileza.

Nas coisas que dinheiro não compra, quem conta um conto aumenta um ponto...

quarta-feira, 8 de maio de 2024

O outro lado da vida

 O relógio não tem mais ponteiros, as horas vagam aleatórias no caos que atira a menina à sorte. O pensamento é o único indicador do tempo. Há um trem no trilho imaginário que marca outro tempo, veloz e feroz a devorar as entranhas do compasso da vida. A menina roda a roda da vida, enquanto as Moiras tecem o fio que será cortado. Às vezes, o destino é premeditado. A menina procura amigos ao seu redor, mas apenas observa o deserto num tom desbotado, a menina perscruta algum diálogo com o eco de sua própria voz em solo abandonado, a menina corre para todos os lados, labirintos humanos, paredes imóveis, corpos intocáveis. Ela perdoa Deus com todas as suas forças, mas o despreza na mesma intensidade em que é desprezada por todos os seres sapientes na Terra. Põe-se diante da mesa a escrever seu mau agouro, não sabe quando tudo começou, quando as coisas deixaram de dar certo. Talvez naquele encontro infeliz, em que resolvera visitar uma amiga antiga. Decidiram beber vinho, um Domaine de la Romanée-Conti falsificado, e começaram a divagar sobre as coisas falsas na vida.

- Dizem que as fakes news são verdades reelaboradas por isso são notícias convincentes.

- Não, idiota, as notícias falsas são fakes news, é só traduzir.

- Mas toda tradução é tautológica e dá margem para várias interpretações. O falso é prejudicial e para ser convincente precisa de certa sofisticação, veja o caso desse vinho, o verdadeiro custa o olho da cara, o falso é menos caro, mas ainda é sofisticado, apenas mais acessível, e alcança um público maior. O falso tem esse poder sobre a realidade e as pessoas.

- Esse vinho é realmente falso? Porque está maravilhoso!

- Está vendo? O falso traduz outras verdades em nossas vidas, basta reconhecer sua condição de não verdadeiro. Convivemos com isso há anos. O que são fatos senão interpretações?

- Vamos deixar essa conversa de lado ou vamos nos tornar fascistas (risos).

A menina tinha ideias brilhantes, mas pouco brio. Entrava e saía de qualquer ambiente com a máscara que lhe cabia melhor. Em um momento era aprendiz, em outro, conhecedora absoluta de todos os assuntos, quase douta. Entrou em crise existencial após mergulhar em si mesma e se saber nada, o absoluto nada, onde pensara ser todo mundo era ninguém. Não havia quem pensasse mais em sua existência. Aquela juventude se transformou num tempo solitário. Cadê os ponteiros da alegria? Envelhecera. Sentada na cadeira da varanda diante da noite melancólica tentava esquecer todos os amigos das horas idas, esvaídos nas nuvens carregadas pelo vento a tentar alcançar o céu distante. O entusiasmo da vida desfazendo-se juntamente com as células adormecidas. Um cheiro estranho, forte, intenso subiu pelo jardim da janela lateral e pousou sobre sua perna fraca, pensara ser a morte lhe perscrutando. Era um percevejo. Matou a morte fétida sem perdão. Aquela menina ainda queria viver, mas sentia um sono profundo diante de tanta ausência e efemeridade no século que ainda conseguira adentrar. Se a morte era fake ela jamais saberia.   

 

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Metaficção da guerra

Michelangelo

Século XXI,19/04/2023, abre-se o grande portal, seria o Armagedon, a pequena cidade em Israel? Eles não sabem, os humanos, onde estarão deuses e demônios. Perséfone atravessa os rios de Hades, alcança continentes, quantas perséfones? Quantos hades? A sociedade vivendo sua própria crueldade, a mão de Deus não toca nada, todos estão ao deus dará, sina ou sorte, quem de seu quinhão saberá? Estão em confronto o bem e o mal? Não. Indigna-se, moço, ambos já se alojaram nos corpos, nas mentes, nas almas, nos corações, alimentando-nos ou nos retroalimentando. A guerra, mísseis e bombardeios. Deus não está morto, morreu a paz. A paz acordada adormeceu em todas as gerações, nações. Pandemia foi nada, moço. Aviso. Aquieta. Nos mísseis, agora verbais, somos todos condenáveis, por que julga? Abriram os portais, mas o de abril, ah, esse ninguém viu que abril, foi o mal, seu moço. O senhor está vendo? Acabou a Palestina? Ela mora dentro da gente, a dor, dói, remói, lá, moço, se oriente. Vem mais, a natureza humana, moço, mudou tudo, tornado, terremoto, sol de fogo, avalanche, o fim é nada, o fim é cíclico, o sofrimento não, vejo expiação, o juízo, moço, juízo final é não ter juízo, morrer vivo no erro, é castigo. Acredite moço, procure a Leitura dos Atos dos Apóstolos, leitura do dia no Vatican News. Se dominado pelo pecado da preguiça, some a data do finado mês de abril. Deus não está morto, moço, está em guerra.

 

sábado, 20 de janeiro de 2024

Como o escritor mata o inimigo

A sangue frio, coloca seu nome nos versos, enquanto rasga seu corpo em pedaços, cortando parte por parte com um pincel de ponta fina e precisa. Reserva uma parte do corpo na geladeira e a outra deixa separada para fazer feitiço para que nunca mais seus fantasmas assombrem. Após alguns meses de frieza, retira alguns órgãos predestinados à dissecação e exame patológico, buscando encontrar a raiz de toda a desumanidade. Estômago e intestino são os iniciais, ligados às emoções cruciais. Em seguida, vem o coração. Este deve pulsar ainda dentro dos punhos fechados como um sacrifício aos deuses e às deusas, para fazer derramar todo o sangue sobre o Totem que irá purificar a sua existência bestial, retirar a Marca de Caim que o acompanha por gerações e o torna vítima de sua própria maldade. Por fim, a boca e a língua são colocadas num frasco de vidro – daqueles usados em laboratórios – que mantenha uma boa refrigeração e flexibilidade, o frasco deve ser lacrado  e etiquetado com o último verso. Assim o silêncio impera sobre todo mal que lhe sai pela boca. Assine sua petição de defesa:

Eu, poeta, venho respeitosamente, perante Vossa Excelência, por seu Representante Legal, apresentar minha defesa prévia pelas razões de fatos e fundamentos a seguir expostos.

Como poeta, reservo-me o direito de matar a sangue frio todo aquele que se declare meu inimigo. Alegando não haver sangue, nem morte, meramente versos ou prosa ficcional que não se caracteriza por nenhuma prova concreta.

A arte em si aniquila seus desafetos.

 




quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

E a carne se fez verbo

Leonardo da Vinci

Lavei as roupas guardadas no baú da sala de visita. Camisas, vestidos, shorts, saias, calças, para todos os gêneros, para toda espécie de visita. A vitrola rodava o som de lamento do Tim Maia, enquanto eu tomava banho num chuveiro ralo e frio, talvez para esfriar algumas ideias sobre minha morte súbita. Sim. Seria um final silencioso e vazio, como a vida que tenho vivido ultimamente, sem diálogos profundos, sem acolhimentos, sem perspectivas. Uma cigana me falou uma vez que eu iria morrer no ostracismo, ela queria ler minha mão e fechei o punho com força, estendendo o braço num ato quase violento. Praga. Ainda vivo, mas não sei se estou viva ou morta, uma morta que ainda respira. Respira a dor da humanidade que me domina corpo e alma; respira o som inócuo do ser humano indiferente à minha existência; respira o efeito de toda a maldade humana, o desprezo, o sarcasmo, o perjúrio, a injúria, a difamação, o desamor. Ainda estou debaixo da água do chuveiro, e tento respirar. O sangue vai minando dos pulsos, a batida do coração vai desacelerando. Ainda quero viver, mas o impulso de morte foi maior, o poder cruel da humanidade foi mais forte sobre a outra pulsação, sobre o desejo de viver. Ainda penso que amo a vida, pareço estar arrependida dos cortes, mas cada gota de sangue que sai do meu corpo é uma cicatriz que se esvai, a dor da morte é menor do que as feridas abertas da vida. Nada mais vai mudar nesta vida. Não há esperança de socorro, ninguém vai tocar a campainha. Quando meu corpo frio estendido no chão do banheiro for encontrado, ao menos o baú de roupas estará disponível na sala, para todas as espécies de pessoas, para todos os gêneros, sem nenhuma exclusão. Na minha lápide quero o escrito: o amor morreu neste pequeno mundo.