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quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

E a carne se fez verbo

Leonardo da Vinci

Lavei as roupas guardadas no baú da sala de visita. Camisas, vestidos, shorts, saias, calças, para todos os gêneros, para toda espécie de visita. A vitrola rodava o som de lamento do Tim Maia, enquanto eu tomava banho num chuveiro ralo e frio, talvez para esfriar algumas ideias sobre minha morte súbita. Sim. Seria um final silencioso e vazio, como a vida que tenho vivido ultimamente, sem diálogos profundos, sem acolhimentos, sem perspectivas. Uma cigana me falou uma vez que eu iria morrer no ostracismo, ela queria ler minha mão e fechei o punho com força, estendendo o braço num ato quase violento. Praga. Ainda vivo, mas não sei se estou viva ou morta, uma morta que ainda respira. Respira a dor da humanidade que me domina corpo e alma; respira o som inócuo do ser humano indiferente à minha existência; respira o efeito de toda a maldade humana, o desprezo, o sarcasmo, o perjúrio, a injúria, a difamação, o desamor. Ainda estou debaixo da água do chuveiro, e tento respirar. O sangue vai minando dos pulsos, a batida do coração vai desacelerando. Ainda quero viver, mas o impulso de morte foi maior, o poder cruel da humanidade foi mais forte sobre a outra pulsação, sobre o desejo de viver. Ainda penso que amo a vida, pareço estar arrependida dos cortes, mas cada gota de sangue que sai do meu corpo é uma cicatriz que se esvai, a dor da morte é menor do que as feridas abertas da vida. Nada mais vai mudar nesta vida. Não há esperança de socorro, ninguém vai tocar a campainha. Quando meu corpo frio estendido no chão do banheiro for encontrado, ao menos o baú de roupas estará disponível na sala, para todas as espécies de pessoas, para todos os gêneros, sem nenhuma exclusão. Na minha lápide quero o escrito: o amor morreu neste pequeno mundo.

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